domingo, 11 de agosto de 2019

Enlouquecimento e imobilidade urbana

Só pode existir uma correlação forte entre o elevado grau de agressividade nas relações interpessoais, do qual muitos reclamam, e as longas horas despendidas em engarrafamentos, situação a que a maior parte da população é submetida, todos os dias, nas grandes cidades brasileiras.

É de nos dar um ar melancólico a lembrança da oportunidade perdida, em matéria de evolução da mobilidade urbana, que foi a inserção no país na agenda de megaeventos mundiais nesta década, e mesmo na que a antecedeu. Mais que isso. Para muitos, além sentimento de tristeza, é de causar fúria a lembrança de que a Copa do Mundo de 2014, no âmbito nacional, e as Olimpíadas de 2016, no estado do Rio de Janeiro, foram vendidas à população como uma promessa já cumprida de revolução na qualidade de vida das metrópoles. Nada de extraordinário é visto, a não ser os diversos elefantes brancos espalhados pelo nosso território, sem falar nas obras atrasadas que vão se arrastando até hoje.

São muitas horas desperdiçadas em filas quilométricas de engarrafamento. Isso faz extrema diferença na vida familiar, sem a menor sombra de dúvidas. Há casos de deslocamentos, que em situações normais seriam irrisórios, gerarem dispêndio de tempo de horas. Distâncias de menos de 20km demandam, por vezes, uma hora, duas — ou mais —, de afobação em ruas coalhadas de carros. E de motoristas mal humorados.

O transporte coletivo é uma situação da qual todos querem distância, a verdade é essa. Quem pode, corre dele. Salvo os abnegados, cuja consciência ambiental e de outras naturezas é maior do que o desconforto de horas a fio em pé, acotovelando-se por cada milímetro de espaço dentro de um ônibus quente e caindo aos pedaços. Os demais correm para as concessionárias, a fim de fazer a aquisição de seu veículo automotor próprio, agravando o estado perpétuo de engarrafamento das artérias das grandes metrópoles. Com o estrangulamento das vias de trânsito, quem se vê em vias de enfarto do miocárdio, ou de um derrame cerebral, são os motoristas, os passageiros do transporte público e os pedestres, estes últimos tendo direito a ver as calçadas onde trafegam invadidas por motos e até mesmo por carros.

Não há muita mudança a vista no horizonte. Não em sentido positivo. Há propostas políticas que versam sobre a flexibilização da autorização para o uso de arma de fogo, o que talvez provoque o efeito de aumentar o número de armas circulando em meio às pessoas no cotidiano. Os efeitos de horas no engarrafamento, somados a uma pistola no porta-luvas, são um ingrediente certo para tragédias. Receio me deparar com pessoas que, ao invés da buzina, farão emprego de disparos de armas de fogo, na ânsia por resolver o estado de paralisia que em se vêem encerradas.

Sentiremos, por incrível que pareça, falta da irritação provocada pela algazarra das buzinas. Embora buzinas não confiram asas aos condutores que dela tanto abusam, elas têm a virtude de não levar ninguém, pelo menos em estado normal de saúde, ao cemitério. Já as armas de fogo mandam gente para o caixão, feitas que foram para tal.

O estado de Pernambuco, em certa ocasião, fez uma série de propagandas em que dizia que as pessoas assassinavam umas as outras por motivos fúteis, razões que, caso houvessem pensado por uns segundinhos a mais, julgariam desprezíveis diante da perda da liberdade — as propagandas terminavam com o assassino preso, adequadamente atrás das grades. Na ânsia por chegar mais cedo ao seu destino, duvido muito  que as pessoas munidas de arma de fogo pensem demais antes de efetuar disparos. Temo pelo aumento de homicídios por discussões bobas no trânsito.

O ideal seria uma pletora de proposições que tivessem por objetivo reduzir o sufoco que as pessoas passam no trânsito, elidindo o desperdício de tempo de vida em filas de engarrafamentos. Seria mais salutar para as pessoas, digno da necessária higidez física e mental para uma boa convivência familiar, que todos gastassem um tempo razoável em seus percursos de casa para o trabalho e do trabalho para casa. Não é o que se vê. A mobilidade urbana não está nem em segundo plano. Sequer se fala no assunto, pelo menos no espaço da alta política nacional.

Enquanto isso, as pessoas vão tendo mais um motivo para adoecimento físico e mental, para desenvolvimento de estresse e de seus consequentes malefícios laborais e familiares. Não é de surpreender que muitas pessoas, já pela manhã, estejam exaustas, antes mesmo de chegar ao trabalho, graças à estafante jornada de transporte a que são submetidas. Não há dúvida de que é um fator de redução da produtividade. Atrasos são uma constante, por exemplo. À noite, então, como chegarão em casa, moídas pela carga laboral e por mais um percurso no delicioso trânsito da urbe em que habitam? É um óbvio prejuízo para a boa convivência familiar, mais um fator para a desestabilização dos lares.

Engarrafamento adoece mentalmente. Não é preciso ser um grande especialista no assunto para perceber a gravidade da situação. Vem desse estado de coisas uma grande parte da loucura cotidiana que visualizamos. É possível que o desejo de alguns dos altos formuladores de políticas públicas seja esse, de ver as pessoas sofrendo no tráfego. Tal suplício pode impedir as pessoas de pensarem. Pensar é perigoso para a classe poderosa, sempre foi. O dispêndio de tempo pode impedir as pessoas de, dentre outras coisas, buscarem informação mais qualificada. A imobilidade urbana pode ser o real projeto do Estado brasileiro para a matéria.

É pena que a incúria de outrora para com o estado da (i)mobilidade nas cidades em nosso país esteja sendo reiterada. A matéria se vê novamente relegada a um lugar esquecido, desprezo levado a cabo através de discursos pirotécnicos, que fogem do foco das aflições dos cidadãos. As pessoas demandam, com toda justeza, respostas para suas chagas sociais. O que vemos, entretanto, é um festival de medidas anunciadas de forma bombástica como soluções miraculosas e que, em verdade, são a crônica de uma morte anunciada. Mais que isso: a crônica de milhares de mortes anunciadas.

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